quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

FOI ASSIM, HÁ TEMPOS ATRÁS ...


Recordo-me bem. Findava 1950. Viajara de ônibus a Osório. Dali até a Vila Maquiné, na carroceria de um caminhão de carga e chegara, com a boca da noite, à Sanga Funda em uma carroça colonial puxada por dois burricos...

A exaustão pialou-me, e o cansaço atirou meu corpo em uma tarimba.

Senti então o trepidar dos bondes, as buzinas roucas nas esquinas; o apitar das fábricas; rodei por encrespadas coxilhas e por horizontes fechados; matei a sede na guarapa dos canaviais; ouvi "causos-marinheiros" - da Lagoa dos Barros; enxerguei o colar alvo do mar e pescador a falar, cantando; colori os olhos na fartura das lavouras da Encosta da Serra e provei o vento salgado que amenizava a fornalha daquele 31 de Dezembro.

A noite inteira se sucederam imagens como estas, bem distintas daquelas que habitualmente vê um homem da fronteira, como eu.

Mas o silêncio do alvorecer, embalado pelo sussuro da Sanga Funda e do canto da mata, quebrou-se. Era uma música estranha, com sabor de cantochão, que se misturava ao perfume silvestre do meu colchão de pasto e, o aroma gostoso de um travesseiro de marcela.

Vozes ásperas, como de quem trabalha na enxada, mas afinadas como batidas de araponga, cantaram assim:


"Agora mesmo cheguemo
Na beira do seu terrero
Para tocá e cantá
Licença peço premero"

Tentei me refazer do sonho, quando senti que a noite me roubara um ano...
"Acordai se estás dormindo
Neste sono tão profundo
Nõs andamos festejando
Ano-Novo neste mundo"

Assim, ouvi, pela primeira vez, um autêntico Terno. Fiquei fascinado pela beleza rústica da maneira de cantar e o profundo sentimento cristão, que brotava dos corações daqueles homens simples do Litoral, a cada verso que lhes vinha à boca.


Em minha infância, já ouvira, da minha avó, algumas quadrinhas. E encontrara referências vagas na literatura regional. Mas, ali estava eu diante de um autêntico Reses...


Daquele primeiro de janeiro de 1951, comecei a tirar este TERNO DE REIS, que vos apresento.

Extraído do livro “Terno de Reis – Cantiga do Natal Gaúcho” (1960) de J.C. Paixão Côrtes

Jornalista Reverbel e familia recebendo o Terno Tropeiros da Tradição - meados da década de 50. Foto arquivo de pesquisa Paixão Côrtes.

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